domingo, agosto 20, 2006

A presença de alguém

Há pouco mais de duas semanas, um amigo meu esteve aqui em casa. Na verdade, algo diferente de um amigo, uma pessoa que conheci em uma viagem e que ficou dois dias na minha casa, em passagem pelo Rio.
Ele foi embora num sábado de manhã bem cedinho, e eu até acordei e me despedi, mas voltei pra cama completamente sonada. Quando acordei, algumas horas depois, olhei em volta e achei tudo tão normal, tudo tão igual, que parecia que ele nunca estivera aqui. Tive que olhar as fotos que tiramos juntos pra voltar a sentir que ele realmente viera e que tudo que passamos juntos fora real. Mas no apartamento inteiro, não encontrei sinal dele. Nenhuma louça na pia, nenhuma luz acesa, nenhuma meia esquecida.
Dois ou três dias depois, me dei conta de uma coisa em que ele mexeu. Na minha estante tenho uns gatinhos de papier maché que ficam sentados nas prateleiras. Um deles, que sempre cai, estava colocado numa posição estranha, todo pra dentro da prateleira, sem as pernas pra fora como seria o certo. Olhei pro gato e sorri.
Não fui eu que mexi no gato, e ele certamente não estava daquele jeito antes, porque eu arrumei a estante antes desse menino chegar. Logo, foi ele quem colocou assim. Provavelmente ele esbarrou no gato, porque as malas dele estavam perto dessa estante e ele sempre passava por ali. O gato deve ter caído e ele colocou de volta desse jeito esquisito.
Quando eu vi o gato, resolvi não mexer. Por duas semanas eu olhei pro gato e pensei nele. O gato colocado na posição errada era a prova de que essa pessoa estivera aqui, era um resquício da presença dele.
A presença de alguém num ambiente pode estar nas coisas mais bobas. Uma marca na parede, um quadro torto, qualquer coisa fora do lugar. As pessoas mexem na sua casa, e tentam disfarçar, mas nunca vão deixar tudo do jeito que só você sabe como é. Arrumar ou não é uma escolha diretamente relacionada a lembrar-se dessa pessoa. Às vezes, ajeitar ou limpar qualquer coisa pode ser como apagar a presença de alguém definitivamente, e correr o risco de apagar também a lembrança.
Hoje eu arrumei o gato na minha estante. Estava meio melancólica, pensando exatamente nessa pessoa, e resolvi que não quero conviver com esse fantasma dele aqui em casa, mesmo que fosse numa coisa tão pequena. Algo meio Eternal Sunshine, só que com rastros. Nosse memória funciona por associação e eliminar os rastros é eliminar os ganchos. Lembrar da pessoa passa a ser algo mais autônomo quando você não tem nada que te remeta a ela.
Não que eu queira esquecê-lo, nem esquecer que ele esteve aqui. Mas não quero conviver com a ausência dele. Porque esse resquício da presença de alguém acaba só reforçando que essa pessoa não está mais lá.
Duas semanas do gato me lembrando ele sempre que eu olhava. Ainda vou passar alguns dias pensando nisso sempre que olhar o gato. Mas é provável que com o tempo o gato volte a ser só um enfeite na minha estante e deixe de ser a lembrança de alguém que foi embora. Nesse dia, e só então, esse alguém terá ido de fato. E as lembranças vão ter que se provar fortes o suficientes nelas mesmas, para que eu não me esqueça de que ele esteve aqui e de tudo o que aconteceu nesses dias.
Há diferença entre a casa e o lugar em que se mora.

Estive procurando um apartamento com a minha mãe durante todo esse fim de semana. De ontem pra hoje, vimos uns não sei quantos, todos aqui perto de casa, mesmo. É estranha essa coisa da casa.

Faz cerca de um ano e meio que saí da casa da minha mãe e vim morar sozinha. Estranhei muito o lugar por algum tempo, demorei a assumí-lo como minha casa. Prova disso é ter passado muito tempo com muitas situações provisórias, coisas empilhadas, sem lugar, improvisadas. Pra falar a verdade, algumas continuam assim. Depois de um tempo, comecei a perceber o quanto isso é sintomático da maneira como você enxerga o lugar que você mora. Você só começa a cuidar de um lugar, melhorá-lo, deixá-lo do seu jeito, quando começa a vê-lo como sua casa, sua primeira casa.

Deixar de chamar o lugar onde passou a infância de minha casa e começar a referir-se a ele como "casa da minha mãe" é doloroso. No início, parece que você está ofendendo alguém, maculando um lugar sacramentado, o seu lar, que vai ser único pra sempre. E você fica se lembrando do cheiro do corredor e admite que só se sente realmente bem, tranquilo e inteiro quando se deita naquele sofá. E quando alguém muda alguma coisa nesse lugar, você se sente estranho, como se tivessem te tomado alguma coisa, te privado de algo muito pessoal. Mas, surpreendentemente, isso passa.


Em Garden State, Andrew Largeman (Zach Braff) diz que acha que a gente cresce quando deixa de achar que a casa dos pais é a nossa casa. E que a constitução de uma família é a tentativa de, enfim, estabelecer nossa própria casa. Não tenho o filme aqui, nem o roteiro, mas é algo assim.


Depois de um fim de semana inteiro procurando apartamento, eu me sentei na minha cama, olhei pras minhas paredes, pros meus livros, pra minha cozinha, e me senti em casa. Não pensei em nenhum momento na casa da minha mãe. o tempo todo, enquanto olhava outras cozinhas, outras salas, outros banheiros, por mais que me lembrassem alguns aspectos do apartamento em que morei com ela, não era isso que me tocava mais. O tempo todo, o principal era pensar em como eu transportaria a minha vida, já configurada neste espaço, para um outro, novo, neutro.

Pode não parecer muito lógico, mas procurar um terceiro apartamento finalmente consagrou este como a minha casa. Por que por mais que eu agora o veja como porovisório, isso me dá uma certa melancolia, uma vontade de aproveitá-lo, de olhar para as paredes e relembrar as coisas que aconteceram aqui. Morar sozinho faz a gente amadurecer muito, se conhecer muito melhor, criar oputra relação com o mundo e com as pessoas.

Vai ser estranho voltar a viver com a minha mãe. Lógico que existem objetivos concretos e sensatos que justificam tal empreitada, mas confesso que sentirei falta daqui, desse lugarzinho que eu finalmente vejo como a minha casa. Vou sentir falta da cor das paredes, da luminosidade, do chão gelado, da praticidade das coisas... e de ser tudo só meu, claro. De não ter ninguém discutindo a respeito da posição das coisas, nem ninguém tirando o conhtrole remoto do lugar.
Chegar em casa e ninguém ver o quanto você está cansado, ou bêbado, ou descabelado, é uma coisa que você só entende quando vivencia, não excepcionalmente, mas todos os dias. Ter total controle sobre a hora em que chega e sai, o que come, quando come, onde come... Sobre o que compra e quando acaba, sobre o canal em que a televisão está ligada, e à que horas...

Tantas coisas confusas envolvidas no que se sente por um lugar. Algumas paredes e um pedaço de chão, com um monte de coisas dentro. Mas é minha casa, e eu vou sentir falta. Não penso mais em outro lugar, no cheiro de corredor nenhum, penso em como vou estranhar não ver essa janela todos os dias. o vento batendo e me assustando, o cheiro e o barulho do restaurante aqui embaixo, o chuveiro apertado... é dessas coisas que eu vou lembrar quando me mudar pra um outro lugar. E vai levar tempo até que esse lugar substitua este aqui, como este substituiu a casa da minha mãe, quando eu finalmente cresci.


Contudo, mesmo estando aqui e sentindo este lugar como minha casa, continuo fazendo planos para uma casa que não existe ainda. Decorando ambientes que não conheço, planejando cores, móveis, quadros... e provavelmente vou continuar assim quando me mudar, porque a casa nova vai ser a casa da minha mãe, e a casa da minha mãe nunca mais vai poder ser a minha casa, não depois de ter superado esse rompimento.
Me pergunto quando vou estar numa casa que seja realmente definitiva, não porque eu vá viver nela até o fim dos meus dias, mas porque será só minha, como esse apartamento finge ser, e porque será até eu mudar de idéia, sem prazo, sem contrato, sem planos de mudanças pro futuro. Uma casa que talvez se torne a casa dos pais dos meus filhos, da qual eles terão que se desprender e se libertar quando forem ter a deles mesmos.