domingo, setembro 17, 2006

Quando se sabe que vai morrer

Assisti ao último filme de François Ozon, O tempo que resta (Le temps qui rest). Trata-se dos últimos meses de vida de um jovem fotógrafo, que descobre um câncer e decide não tentar nenhum tratamento ao saber que suas chances de cura eram praticamente nulas. Ele simplesmente escuta do médico que tem cerca de três meses restantes de vida e decide não contar aos pais, nem à irmã, nem ao namorado, não conta a quase niguém, decide morrer sozinho.
Lembrei-me muito de Minha vida sem mim (Mi vida sin mi), de Isabel Coixet. Vi esse filme há algum tempo, e me lembro que me tocou demais, porque narra os últimos meses de vida de uma jovem na mesma situação, que se descobre vítima de uma doença terminal e decide encerrar seus assuntos, deixar tudo pré-ordenado para que a vida de sua família funcionasse sem ela.
Os acontecimentos nas vidas dos dois protagonistas são diferentes, os anseios são outros, as realidades são muito distintas, mas a aproximação é inevitável por motivos muito simples: não só o tema gerador é o mesmo, a morte pré-datada, mas também o efeito, imaginar-se na mesma situação.
Quantas noites passei em claro imaginando minha vida sem mim, e quantas passarei agora, pensando no que faria com o tempo que resta? Se pudéssemos saber quanto tempo resta... Se pudéssemos enxergar o espectro da morte aproximando-se antes de sermos alcançados, quais coisas se tornariam prioridades imediatas, e quantas perderiam a importância?... Às vezes é bom tentar pensar em quais descartaríamos como fúteis, banais ou desnecessárias, talvez elas sejam supérfluos mesmo hoje...

Uma vez me disseram que eu vivo como se a morte estivesse espreitando por cima do meu ombro. É verdade que talvez me sinta assim. Meu pai morreu de uma dessas doenças que a gente sabe que se vai morrer com alguns meses de antecedência. Não se pode fazer muito, a não ser tentar tornar aqueles últimos dias difíceis os mais toleráveis que for possível.
Não me lembro dessa época com meu pai, era muito nova. Mas convivi por toda a vida com a dificuladade da minha mãe em falar no assunto, com as constantes ponderações sobre possíveis mortes súbitas e o que fazer nesses casos e com a ausência da figura paterna.
Dentre as muitas conseqüências dessa ausência a serem analisadas durantes meses em sessões de divã, percebo esta, uma sensação de que a morte está sempre prestes a acontecer, seja comigo, seja com os outros ao meu redor. Me tornei uma pessoa um pouco triste, um pouco obcecada com isso, com essa morte iminente, colada no meu pescoço. É muito natural para mim pensar, e dizer, que as pessoas podem morrer, de uma hora para outra, porque eu sei que é assim que acontece, e sei de verdade. Sempre penso que posso morrer quando atravesso a rua, quando pego um avião, quando ando de madrugada pelo Rio de Janeiro. E penso o mesmo dos outros. Isso incomoda muito algumas pessoas que convivem comigo, e por isso evito tocar no assunto. Mas penso.

Acho que vivo num meio termo estranho entre o suspense da morte e a premeditação. Ao mesmo tempo em que me pergunto quando vai ser, como, onde, cogitando milhões de opções e vendo possibilidades em todas as situações, passo meus dias avaliando se as coisas valem a pena. O protagonista de François Ozon fala nisso, diz que tem se perguntado frequentemente sobre a utilidade ou a finalidade das coisas. Eu penso muito nissso. Penso que, se eu morresse hoje, ou amanhã, de que serviria tal e tal coisa? E tento ter sempre pelo menos uma coisa que valha a pena em cada dia.
Todos os dias, tenho a preocupação de fazer alguma coisa prazeirosa, seja sair para dançar ou ler um bom livro, ou escrever alguma coisa interessante, enfim, fazer alguma coisa cujo resultado seja imediato, cuja fruição seja simultânea com o fazer. Não adianta passar seus dias plantando sementes que não se sabe se haverá tempo para colher, por mais cafona que isso soe. Planos a gente faz mas não necessariamente vive. É urgente que se viva todos os dias momentos plenos neles mesmos, momentos que se possa considerar válidos, merecedores dos seus últimos minutos nesse mundo, porque pode ser que sejam, realmente, os últimos.
Ninguém está livre de ouvir de um médico que só se tem mais três ou quatro meses de vida. Eu faço questão de tem certeza todos os dias de que meus últimos meses têm valido a pena, e que não me arrependeria nem acharia que perdi tempo com besteiras se descobrisse que foram realmente os últimos. Por que nossa presença nesse mundo é sempre tênue, frágll e inesperada. Da mesma maneira impressionante como fomos gerados, um espermatozóide em milhões feculda aquele óvulo, naquele instante, podemos também morrer de formas inusitadas e improváveis. Porque somos homens e isso nos faz racionais, produtivos, inventivos e bem-sucedidos dentre os seres vivos, mas também nos faz frágeis e efêmeros como todos os outros.

quinta-feira, setembro 07, 2006

Vontade de pular no tempo

Hoje eu vi um apartamento com a minha mãe que mexeu muito comigo. A princípio, não havíamos gostado do prédio, por causa da fachada e da portaria. Mas entramos. No hall do elevador, já tive um bom pressentimento. A porta era muito branca com uma maçaneta de aço escovado, muito nova, muito bonita. Barulhos de criança correndo e gritando lá dentro. Eu, que não costumo gostar de crianças, sorri.
Uma moça de uns trinta e poucos anos abre a porta. Vestindo um conjunto de moletom, ela era
simples, os cabelos castanhos escuros brilhantes, uma moça bonita. Dois meninos corriam pela sala, entre 5 e 7 anos de idade, eu não entendo muito de crianças, mas achei os dois lindos e saudáveis, divertidos e felizes. Entrei no apartamento.
A sala era ampla e muito clara, uma vista bem livre, paredes
brancas e móveis lindos. Gostei de todos os quadros nas paredes, gostei das cadeiras à mesa de jantar e da estante da televisão. A janela imensa me dava vontade de sair flutuando.
Depois da sala, vinha um pequeno corredor. Uma porta dava para uma espécie de escritório, originado por uma dependência de empregada revertida. Ali, sentado ao computador, o marido. Um homem alto e lindo, também jovem, sorridente, forte, o típico estereótipo do ser masculino provedor, que te passa segurança só no olhar. Nas paredes, prateleiras com muitos e muitos cds e quadros com capas de discos e ingressos de shows. Led zeppelin, deep purple, kiss... Além de lindos, eles definitivamente tinham bom gosto.
O resto do apartamento acompanhava o início, cômodos claros, arejados, amplos apesar de não muito grandes,
acolhedores e confortáveis, com janelas enormes que fazem você se sentir dono do mundo, dono do céu.
O casal está nesse apartamento há menos de um ano. Estão se mudando para um maior. São lindos, têm filhos encantadores, móveis e peças decorativas de extremo bom gosto, dinheiro para uma vida
confortável e alguns luxos. Tinha algo de sonho naquele apartamento, um ar de lua de mel.
Fiquei com o coração mole, com o peito um pouco apertado. Não que eu queria me casar e ter filhos aos vinte anos, mas finalmente eu me sinto
adulta, finalmente eu me sinto madura, por que eu quero isso tudo. Ainda que no futuro, eu quero com certeza, com uma certeza que eu não conhecia.
Quero comprar um apartamento com
alguém lindo com quem me sinta nas nuvens e criar meus filhos nele, montar árvore de natal no inicinho de dezembro e esconder ovos de páscoa em março. Quero ter uma cama de casal com o edredom de cores que combinam com a cor das paredes. Quero me debruçar na janela com meus filhos e mostrar as ruas, os telhados, as coisas todas que se pode ver. Quero ter um bolo de laranja na cozinha. Quero me sentir em casa.

sábado, setembro 02, 2006

Moça de colar de fita

Acabara de chegar em casa. Sentia-se frustrada e cansada. Olhava-se no espelho no banheiro amarelado. Sentia-se ridícula. Ridículos os olhos pintados escuros, os saltos e a bolsa de vinil, ridículos os brindo compridos e o cabelo afetado, ridícula a hora. O relógio ria dela, não era hora, não era hora. Todos os solteiros ainda se esbarrando pela madrugada e os casais saindo cedo para rolar entre seus lençóis. Em ambas as opções, suor, muito suor e pouco fôlego. E ela diante de um espelho, a boca seca, os olhos apertados.
Sentia alguma raiva, de muitas coisas. Dos olhos verdes zombeteiros, dos pés leves, do estar sonso. Raiva das mãos que entrelaçavam cinturas e as largavam com a mesma naturalidade com que roubavam-se beijos. Raiva dos momentos de antes estampados nas paredes sujas e dos olhares impressos nas escadas, das lembranças ricocheteando em seu cérebro.
Sentia-se cansada e frustrada. A hora inadequada, os casais em seus quartos, as pistas lotadas, as bocas
ávidas do lado de fora. Sentada, diante de um derradeiro copo, sentia as pernas doloridas e deixava o olhar vagar perdido. Lia sobre anseios alheiros, refletia sobre o ausente.
Imaginava uma vida que
pudera ser sua, pessoas outras, noites mais calmas, roupas mais leves, dias mais azuis e cheios de suavidades. Imaginava os dias que recusara e as companhias de que abdicara. Dias distantes no tempo, ocupando-lhe diariamente a memória e os lembretes de seu descaso.
Imaginava também a vida pela qual nunca optara nem nunca realmente se esforçara para conquistar. Uma vida sem horas e cheia de
minutos lentos, cheia de palavras enroscando-se em seus braços e fazendo crescer macios os seus cabelos. Palavras que rodeariam sua cama em conquistariam as ruas debaixo de seu prédio até às mais largas avenidas. Cheia de melodias também, mas outras.

Sentia-se frustrada,
cansada e ridícula. Perguntava-se por quanto tempo.